segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Uma pirâmide e três pinguins

E depois há sempre o dia seguinte. E nesse dia porque não ir ao Louvre? Primeiro domingo do mês, entrada gratuita e muita coisa a ver com outra tanta a deixar para trás... Assim foi decidido, assim foi feito. Grande borga na noite anterior e obviamente aquilo que é mais evidente fazer-se no dia seguinte é levantar-me antes das galinhas para me ir encafuar num museu! Mas claro que sim! Pensa-se, quando em paris, faça-se como os parisienses. O único ponto é que faz tempo que os parisienses aprenderam o significado de primeiro domingo do mês e normalmente fazem viagens à periferia nesse dia. Passo a explicar, o primeiro domingo do mês significa que todos os museus, vulgo, exposições permanentes estão abertas e com acesso livre e gratuito. Esta é a teoria, porque a prática é bem mais dolorosa. Primeiro domingo do mês significa filas com centenas de pessoas, significa efeito massagem forçada do metro – aquele efeito especial que se sente quando mais uma agulha na carruagem forçaria a saída de uma pessoa – só que num espaço bem mais amplo, significa dois gigantes nórdicos no meio da confusão de gente e sem repararem te levantarem do chão e te arrastarem com o resto da vaga de gente que vagueiam sem destino num percurso predefinido. Pronto, ok, exagero um bocado, não é assim tão intenso... não eram nórdicos, eram ingleses...
Mas pronto voltando ao Louvre. É um dos maiores museus do mundo com uma quantidade de peças que faria corar o melhor corsário inglês. Porque estou sempre a falar dos ingleses? Não sei, apetece-me! Tem peças de uma beleza incomparável e outras, como a Gioconda, que são, digamos, famosas. Nunca compreendi todo o histerismo em torno de uma obra tão, ahem... famosa. Juntemos rapidamente a beleza do esfumato antes que algum italiano me defume o cérebro com um pauzinho de incenso.
Esta excursão foi partilhada com a Clara, a Adelina e o Fernando Gaivota (de quem falarei posteriormente) e pronto, assumo que apesar de todos os pontos negativos que indiquei me diverti bastante e foi educativo. De toda a forma arte é sempre educativa. Mas o problema é que o plano era de ver todas as peças do Louvre – com maior ou menor atenção – e afirmo que as vimos! Vimos todos os andares, galerias, salas, cantos e nichos, algo que deveria durar 45 dias foi visto numa larga manhã. Resultado? Passei 1 mês a vomitar arte por todos os poros do meu ser, bastava falarem-me de um museu e ficava fisicamente indisposto.
O resto do dia não foi mau, petiscámos qualquer coisa na cozinha do 3º andar, aventamos a possibilidade de ir ao parque Disney e conversámos até chegar a hora do jantar. Creio ser este o ponto mais enriquecedor de viver numa residência estudantil e para mais numa tão especial como a Casa de Portugal. O que se partilha, o que se vive, o que se transmite, a entreajuda, a dádiva de algo tão simples como, o tempo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A primeira (des)ilusão ou a pedagogia do erro.

Talvez seja verdade que tudo tem a sua razão de acontecer, que nada seja por acaso, que tudo o que fomos, somos ou desejamos é nosso e nos pertence e não podemos apagar. E se é nosso, se aconteceu e se foi assim foi porque nós quisemos que fosse ou não assim, porque nós estivemos ou não estivemos, porque nós agimos assim ou ficamos pacificos assados. Diz um amigo que «há pessoas que escolhemos para esquecer e outras que escolhemos para lembrar». Fazendo as contas todas existe realmente uma, que se a memória fosse linear e radiocomandada, eu decideria, mais do que esquecer, apagar, eliminar, banir de vez do meu passado: o (dito) Mahomed, porque só me fez mal. Não foi preciso muito para me perceber que se tratava um falsário. Falsário de indentidade, falsário de sentimentos, falsário de palavras. Só me fez mal durante as três semanas que passamos juntos. As três piores que passei em Paris. Deu-me um nome que não era o seu, falou-me de um passado que não viveu, e fez-me crêr num sentimento que não sentiu, a acrescentar a isto devo dizer que era realmente uma personagem: filho adoptivo desde os vinte e muitos anos de um americano idoso que vivia num belo «chateau» nos arredores da cidade; filho biológico das ânsias de petroleo e das contas bancarias que o dito «pai» tinha na Suiça; filho ainda da vaidade e da pseudo-magnificiência de alguém que quer subir na vida pela via da facilidade. Um miserável de espirito diria, mas com uns olhos manipuladoramente perigosos. Se tivesse deixado as coisas se arrastarem, talvez me tivesse enfiado um véu rosto abaixo e trocado por uns litros de crude e alguns míseros camelos, e não será filme com certeza. A Adelina tinha razão. Durante uns tempos continuou a passar pela Rag para me deixar cartas, que confesso nunca li. Alias, nunca as abri. Porque sabia que ao abri-las, abriria também uma ferida que não estava de todo curada. Talvez não tivesse sido uma atitude tolerante, mas a verdade é que foi a única que arranjei para me esquecer dos dias horriveis e de humilhação por que me fez passar. Preveni a D. Eva da recepção que lhe não aceitasse mais as cartas que ia depositar em maõs na residência. Por sorte do acaso, nunca mais me cruzaria com ele. Ainda bem. Hoje sempre que alguem, por desventura de conversa, ou desvio nocivo de pensamento me falam nele, faço questão de não me querer lembrar. E vai resultando.

No entanto, nada me impediu de viver coisas fantásticas e de conhecer pessoas que escolhi para não esquecer. Como o Fernando Gaivota e a minha primeira visita ao Louvre acompanhada pela equipa dos crepes de porte d'orleans, dos chás de maçã e canela e das coisas sérias que entretanto se formava no seio de uma familia que aos poucos se construia. Entretanto o meu quarto estava cada vez mais confortável, com uma decoração que lhe ia dando caracter, pertença, possessão, dona. Sim, era o meu quarto agora e sentia-me bem nele. Já não eramos estranhos, e as formigas com o frio a apertar migraram para outras bandas. Nas paredes, os cartazes do «lire en fête» e da «nuit blanche», os maços coloridos que me lembraram em todas as línguas que «fumar mata», o recorte do Público a anunciar que «recordar é viver», os postais que ia guardando aqui e ali, as fotografias que me ancoravam em casa sem me aprisionar. E as folhas amareladas que a Adelina apanhava do chão a lembrarem-me como é bonito o Outono em Paris...


segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ça pourrait être pire

O dia seguinte não é fácil, mas ... é o dia seguinte e como tal devo-me sentir renascido. Só que não me sinto renascido coisa nenhuma, sinto-me mas é contraído. Mas enfim, como se diz por aqui, podia ser pior. É um raio de uma expressão. Podia ser pior, sim, o tecto da casa poderia ter também conjurado e me ter caído todo em cima da cabeça... podia ser pior. No fundo, no fundo, poderia ser sempre pior. Em vez de cogito ergo sum digo apenas, vivo logo engano-me. Mas estou vivo e mesmo pleno de ironia afirmo, Ainda bem que estou vivo!

Exactamente sobre esta expressão um investigador do meu instituto, chamado Jean George Louis que em português daria algo como João Jorge Luís – enfim, franceses. Mas a história é a seguinte: Numa das muitas viagens de avião que ele fez aos Estados Unidos, sentou-se ao lado de uma americana, conversa puxa conversa, e começaram a falar da família, dos filhos, a mostrar fotografias, etc. Vai aos pois a senhora lá lhe diz: Ah mas tem uma filha tão bonita! E ele responde: Podia ser pior! Nem imaginam que se passou depois, pois bem, a senhora começou a insulta-lo e a perguntar como podia dizer algo assim de uma filha... Enfim, franceses e americanos, sempre reivindicativos quando podem fazer escândalo...

Mas de volta ao dia seguinte. Desde que havia chegado tinha tido vontade de dar cursos de capoeira na ciup, mas para tal necessitava de alunos. Tinha já falado à Clara antes, mas digamos que neste momento não me sentia muito à vontade... Mas combinações são combinações e onde dou a minha palavra é como se assinasse por baixo. Lá fui ter com ela e disse-lhe com todo o à vontade que consegui arrancar do meu ser: Sempre queres ir fazer o curso de capoeira? Ela disse que sim... Combinação ou não, ela bem podia ter dito não... Mas o não, não veio!

Lá veio a hora da aula com a Clara, mais umas pessoas e o Mahomed?????? Já não bastava o facto de ela estar presente ainda teve de trazer o mentecapto... Há dias em que uma pessoa não deve sair da cama e ainda menos abrir a boca... Mas pronto, a realidade que tinha à minha frente era a realidade com a qual tinha de lidar. O que vale é que quando ensino, sou professor e sempre é algo em que me posso refugiar. Não tenho de interagir a nível pessoal, tenho apenas de interagir a nível profissional. E não, não o rachei de alto a baixo, porque ainda que pudesse seria algo que nunca faria, nunca numa aula! A aula correu bem, a nível de técnica e de aprendizagem, e correu ainda melhor quando acabou, pois fui-me embora ver uns episódios de Noir e descomprimir.

Entretanto dá-me a traça e lá dou um saltinho à cozinha. Adivinhem quem encontro? Tcharam!!! A Clara... ufff, bem... ok. Queres lanchar, pergunto. Pouco depois chega uma companheira da residência, admito já não me recordar do nome dela. Recordo-me contudo que decide fazer o seu prato-especialidade... Que é, iogurte de morango com atum? Creio nesse preciso momento ter escutado os seus intestinos, o seu fígado, enfim todas as suas entranhas a reclamarem em uníssono numa súplica terrificante !!NÃO!!... E acreditem ou não, ela não escutou a súplica e comeu mesmo aquilo. Comeu como quem, o que tem em face a seus olhos não representa sequer um desafio. Comeu como alguém que considera ter à sua frente uma representação física de uma profunda vontade emitida do seu egos! O meu id, via narinas, é que, aparvalhado e em surdina, reclamou um bocado. Aquela mescla cheirava a... morango com atum. Use your imagination!!! Creio que nem sequer os franceses com a sua nouvelle cuisine alguma vez arriscaram tal junção. Enfim, apenas mais um ponto do dia para me mostrar que nesta vida, tudo, mas tudo, é possível.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Halloweenizando o nosso mundo.

A festa de Halloween começava às dez da noite. Confesso que estava curiosa. Mais, estava ansiosa. O aparato era grande. Não se falava noutra coisa pelos corredores daquela casa que reclamavam por uma boa pintura há décadas. A Joana e a Maria João do meu andar, que já viviam ali para lá de dois anos (e portanto conheciam bem os cantos), faziam parte do Comité e de cada vez que me cruzavam repetiam «queremos te ver na festa, não podes faltar». Obvio que com tamanha publicidade e pompa tão entusiasta não poderia faltar. Naqueles dias, por muito coerência que se tenha tornava-se complicado contornar as malhas da publicidade. Neste caso, mais do que não querer contornar a publicidade eu própria me pus a publicitar a festa. Nunca tinha aderido à moda do Halloween, isto porque no meu país a moda nunca pegou, pelo menos quando era moda eu ter idade para festejar tais solenidades anglo-saxónicas. Dizia, que me ocupei da publicidade. Não pude deixar, portanto, de convidar o rapaz simpático que tinha conhecido dias antes, quando estava a jantar com o David e a Adelina na cantina. Não sei porquê mas longe de casa sentia-me muito menos tímida. Talvez porque não tivesse ninguém a julgar-me, talvez porque me sentisse longe de todos os meus complexos e mais perto de toda a minha liberdade. Na verdade, não convidei só um, convidei três ao mesmo tempo. Uma questão de diplomacia…diria. Eram amigos. Conhecemo-nos na cantina e a conversa foi fluindo porque (lá está) eu falava inglês e ele (contrariando a generalidade dos franceses) também. Confundiu-me com uma checa, depois com uma polaca, depois com uma russa. Por instantes, fui alemã, sueca, eslovena. Quando lhe disse que era portuguesa, começou a dizer-me o que todos os seus conterrâneos me repetiram ao longo dos anos : «ahh a minha mulher-a-dias também é portuguesa». Ao comentário, (que ao fim de algumas repetições começa a ser de difícil digestão, não porque tenha alguma coisa contra as mulheres a dias – muito pelo contrário – mas porque as profissões portugueses não se cingem só aos trabalhos domésticos), seguiram-se as palavras mais cotadas, isto é as palavras que os franceses sabem dizer em português: no topo do topo está sem margem para dúvidas o belíssimo «carralhu», o pessoalíssimo «filho-dá-putá» e o delicioso «bacalhá-ú». Um mimo, o léxico luso por estas bandas. Ele disse que apareceria. E apareceu mesmo. Mas bastante tarde. O tempo da festa começar e de alguns propósitos se desenharem. A sala era pequena, sufocante, metros debaixo da terra. Era excessivamente quente. No entanto, não houve condicionantes alguns para que não se demorasse a encher de gente, de fumo, de música, de muitas cores, de tantas línguas diferentes, de bebidas, do suor dos corpos transpirados, de miúdas a dançarem em cima dos balcões. Algo entre o psicadélico e o sincretismo brasileiro, algo difícil de descrever. Lembro-me que de meia em meia hora pedia a Adelina para subirmos até ao rés-do-chão, para poder respirar. A Adelina acedia aos meus pedidos e aproveitava sempre para telefonar ao namorado, o Pedro Abade que tinha ficado em Coimbra cheio de saudades dela – dizia. Ligavam-se todos os dias. Reconheço que chegava a perguntar-me o que tanto tinham para conversar, todos os dias, todas as horas. Mas a verdade é que tinham. Acho que quando estamos apaixonados mesmo que não tenhamos nada para acrescentar de novo, temos sempre muito para conversar. Que mais não seja para dizer que o cházinho de limão mexido com a colher do serviço da loja dos trezentos da esquerda para a direita pelos dedos do amado nos faz uma falta imensa ; que só de pensar nisso ficamos com vontade de adoecer para merecermos de novo um chazinho de limão mexido com a colher da loja dos trezentos da esquerda para a direita pelos dedos do amado. Bastará descer as escadas da casa para que o desejo do chá de limão passe. Da terceira vez que desci as escadas vi o David em plena forma. Dançava que nem um louco no meio da sala, transbordava em suor e alegria. Ria muito. Não havia dúvidas : estava a divertir-se e a divertir quem o via dançar. Sim, ver o David dançar é um regalo para os olhos. Dançava a 300 à hora e só não parecia o Michael Jackson porque tem uma pele mais bronzeada e um corte de cabelo que não o deixa perder a sua «masculinidade», como ele gosta de dizer. Eu e a Adelina aproximamo-nos do dançarino e meias desengonçadas lá tentamos acompanhar o rictmo. O que evidentemente não era fácil. Dançar nunca foi o meu forte e nunca o seria. Felizmente, não tive de dançar muito porque o David sugeriu que nos afastássemos. Queria «conversar»… Dei por mim com um rapaz que me conhecia à dias a dizer que sentia algo mais que uma simples amizade, que nunca pensou que em Paris se ia apaixonar por uma portuguesa, mas era o que lhe estava a acontecer, que me achava uma miúda incrível, que queria algo mais. Grandes sentimentos para tão pouco tempo de convivência. A resposta não tardou. Não o queria magoar. Tinha esse grande mal, por vezes inocente, de não querer magoar as pessoas. É difícil de aceitar que a nossa felicidade depende muita das vezes da infelicidade dos outros… Tentando ser sincera e reconfortante, afável e directa, disse-lhe que o que eu sentia por ele se baseava noutros pilares e que iria seguir certamente por outro caminho, outro que não esse da «mais do que uma simples amizade». Pedi-lhe mesmo desculpas se o tinha iludido de alguma maneira. Se o tinha feito crer que existiria algo mais, e se o tinha feito, fi-lo inconscientemente. Eis o eterno debate entre masculino/feminino… Por muitas línguas que se falem, por muitos gestos que se façam, há-de sempre escapar uma interpretação ou outra de prismas diferentes. Ele aceitou, mas aceitou mal. Orgulho masculino de quem ficou com o coração, melhor, com as ilusões a doer. Durante os meses que se seguiram afastou-se de mim, mas muito sorrateiramente, para que não ficasse eu a pensar que lhe tinha destroçado qualquer coisa. As previsões da Adelina estavam afinal correctas. Aliás, a Adelina raramente se enganava nestas coisas de coração. Só se enganava com o dela. Entretanto, o Mahomed chegou à festa. Sim era ele. Estava lindo. Vestia de mosqueteiro, tinha uma pose altiva e um olhar manipulador de Napoleão : cativante, penetrante e outros tantos adjectivos com «ante». A Adelina não simpatizou com a personagem. Sinceramente não percebia porquê. Dizia-me que ele lhe parecia seguro demais, sério demais, vazio de sentimentos demais. Eu achava que o conhecíamos há pouco tempo e que por isso mesmo qualquer que fosse o julgamento seria precipitado. A mim ele agradava-me. E desde o primeiro olhar que senti que qualquer coisa. E essa qualquer coisa acentuou-se. Veio ter comigo ao meio da sala e perguntou-me se queria ir com ele aos Champs Elysées a uma festa muito private, com uns amigos muito in. Eu recusei, não porque me queria fazer de difícil, mas porque achei prudente não me afastar muito de casa com alguém que mal conhecia. Ele ficou. O tempo de bebermos um copo e rir-mos juntos da pronuncia inglesa dos franceses. Deixou-me o telefone e a dançar com os amigos. As 3 da manha a festa acabou e eu passei o resto da noite a pensar nele. Esta seria a primeira festa do resto das nossas festas, naquela residência. Hoje com alguma distância começo a perceber que as festas daquela casa eram realmente qualquer coisa de genuíno. Num clima de extrema vitalidade íamos «carnavalizando», ou «halloweenizando» o nosso Mundo à nossa maneira durante horas seguidas… até chegar o seu “enterro" e com ele a ressaca e as coisas sérias… numa natureza, que entretanto, se tinha renovado. No outro dia de manhã o David dirigiu-me a palavra, já sem o sorriso da palavra, mas com o áspero da palavra e perguntou-me se queria ir aprender a dançar capoeira. Eu quis.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Passam-se tempos e mostram-se vontades

Quando se vive na residência André de Gouveia, passa-se muito tempo com os colegas residentes, por vontade, por claustrofobia ou simplesmente por acaso. Não, eu não sou claustrofóbico, pelo menos em geral, mas sou-o quando o meu espaço vital é de 10 metros quadrados, sim, 10 metros quadrados, com um um seguido de um zero. Este zero também é um todo, mas as partes que engloba são profundamente pequenas. Não admira que passasse o tempo com a janela aberta. Sempre aumentava significativamente a área do meu quarto de alguns quilómetros quadrados. Ah e também fazia sempre muito calor. Verdade que sempre fui muito acalorado mas quando por acaso encontras a Núria do fundo do corredor a sair do duche com uma toalhinha – acentuando bem o inha da toalhinha – qualquer um ficaria com os calores, mas enfim, a janela aberta era mesmo para aumentar o meu espaço vital.
Entre as muitas e variadas pessoas que conheci nos meus primeiros tempos na cidade universitária, aquelas com as quais melhor me liguei – de uma maneira pura – foram a Clara e a Adelina. Porque estou sempre a pensar nelas? A verdade é que quando não se conhece vivalma, as pessoas com quem nos ligamos tornam-se a nossa família. Tornam-se as pessoas com quem desabafamos, a quem tudo contamos, com quem compartilhamos as alegrias, as tristezas enfim, todos os pequenos momentos que constituem o dia a dia. Em particular, com a Clara conversava muito e de assuntos muito interessantes... Ora na relva em esplendor, ora na cantina em pavor, porque a comida nunca foi grande espingarda... Falámos, partilhámos, vivemos e... eu interessei-me. Não falo de paixão no seu contexto lascivo, porque acho que não o era, talvez já existissem alguns sentimentos. Talvez tivessem existido desde o início, desde o primeiro olhar. As coisas do coração são sempre confusas, em particular, para quem as tenta explicar, ou neste caso, relatar. Ainda não sabia o que estava eu a fazer em França, mas sabia que os seres humanos funcionam de forma similar em toda a parte do mundo. E pensando e reflectindo vi a primeira festa organizada pelo comité de residentes a aproximar-se. E pensando e reflectindo vi a oportunidade que ansiava a aproximar-se. Uma questão válida é: Mas porquê numa festa? Porque não antes, durante as tais conversas interessantes que tínhamos? Se calhar foi um erro, mas a primeira coisa que se aprende quando se chega à cidade universitária é que, por muito normal que as pessoas sejam, por muito constantes e correctas que sejam, nas festas tudo pode acontecer. E se tudo pode acontecer com os outros, porque não comigo?
Passam-se tempos e mostram-se vontades. Por vezes surpreendemo-nos a nós mesmos, o que queremos, o caminho pelo qual seguiremos, simplesmente todas as coisas que fazem de nós o que o mundo vê. Por vezes apenas aquilo que deixamos o mundo ver, porque há sempre algo nu mais profundo de nós que nos pertence a nós e a nós apenas. Algo de secreto, algo de privado, algo de profundamente pessoal. E não é apenas por uma mudança de cidade, país, língua – bem, é muita coisa, mas ainda assim – não por tal coisa que esse profundo e secreto EU muda. O que acontece é que, por vezes esse profundo e secreto EU amadurece uma idea, um sentimento, um desejo, mesmo sem o eu se aperceber. Pior será se decidir verbalizá-lo para desespero dos presentes.
E o meu profundo e secreto EU surpreendeu-me bastante! Em vez de ir cool e calmo, decidido e interessante, foi directo e stressado, perdido e angustiante. Angustiado ficou o eu quando o EU decidiu sinceramente dizer exactamente aquilo que lhe ia na cabeça... E quem sofreu com isso? Eu...
Admito que depois fiquei uns bons tempos sem poder olhar a Clara nos olhos... Mas tudo passa e o tempo, ... o tempo não cura mas, com amizade tudo se atenua.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Os primeiros dias.

Nunca consegui embarcar naquele turismo de procissão, onde saltitamos de museu em museu, de doca em doca, de igreja em igreja e tudo com o despertador posto para às 6h30. Também nunca fiz um interail - e quase toda a universidade já o fez. Aliás, correr a Europa em comboio tornou-se o culto dos anos 90, prolongado nos 2000. Uma espécie de equivalente às viagens à boleia que se faziam nos anos setenta, quando, dizem, «ainda era seguro andar-se à boleia». Aquelas viagens indescritiveis que os pais contam com a nostalgia no olhar e as saudades na pele de quem fumava ganzas ao som dos reggies e dos rocks da altura, mas que se vêm, hoje, obrigados a tornear tais evidências que as fotografias contrariam. Para a nossa boa educação - acho.
Também nunca fiz um cruzeiro pelo mediterraneo ; uma volta ao mundo em oitenta dias (mesmo que Verne me tenha tentado); não conheço o adriático nem tão pouco naveguei pelo Tejo, a não ser naquelas travessias de uma margem à outra de Lisboa que se fazem em vinte minutos e onde, em vez de se ouvir o rio a mesclar-se com o mar, se ouve os choros das criancinhas e se vê os rostos cansados de quem volta a casa num final de tarde de um dia rico de trabalho.
Tão pouco tinha vivido sozinha, a não ser naquele Verão já distante em que passei quase dois meses em terras de sua majestade, numa estância de caça do então Rei Ricardo (dito coração de leão), agora transformado em Colégio Interno para meninas de bem. Não que fosse uma menina de bem (também não era uma menina de mal). Na verdade, era isso mesmo apenas uma menina (eis o termo apropriado) que queria ir de férias para longe das asas protectoras da mama. Como pretexto: « aprender o inglês», língua sem a qual não se sobrevive nos dias que por aí correm. O que para os mais puritanos pode ser um escandalo, mas de inconturnável utilidade. Por exemplo, quando se vai à Eslováquia dá-se graças a Deus - ou a qualquer outra transcendentice, pelo facto de que esta língua tão pobre quanto simples, exista. O mesmo acontece quande se vai ao Algarve, em pleno mês de Agosto. Thanks God: i can speak english! I can talk with a barman! I can take my coffee!
Nunca tinha ido a Paris. Também nunca tinha feito o Erasmus, que explicado suscintamente é um intercâmbio de estudantes entre universidades europeias; uma boa medida para suscitar a mobilidade de jovens numa europa que se quer cada vez «mais unida na diversidade». Não, isto não poderia deixar passar ao lado. Tinha de embarcar, fazer, viver a experiência. Assim, aos 21 anos e muitos meses, aos 58 kilos e ao quarto ano de «Estudos Portugueses» despedi-me de um namorado que não o seria por muito mais tempo, de uma cidade que passaria a ser de «férias» e muito mais amada do que antes, dos amigos de sempre, das colegas camaradas de faculdade e de uma familia que apesar de longe nunca me deixou de apoiar. Ia à procura do mim. De quem era, do que queria, do que raio andava aqui a fazer. Hoje, costumo dizer, que em Lisboa cresci e em Paris renasci.
Quando sai do avião, que me deixou no terminal Sul do aeroporto de Orly, naquele final de uma manha de Setembro, a primeira exclamação não foi a mais evidente: «sinto-me em casa, mas com mais frio». E na verdade sentia-me mesmo em casa. No ar não havia o cheiro das castanhas assadas de inicio de Outono, ou das sardinhas assadas de final de Verão, mas havia qualquer coisa, que me fazia sentir em casa. Havia mais carros, mais motas, mais bicicletas, mais pessoas. Mas havia qualquer coisa que me fazia sentir em casa, qualquer coisa que me dizia que Paris estava a minha espera. Sozinha e sem falar o francês ( ninguém diria que tinha sido uma boa aluna no liceu a francês), consegui apanhar o taxi e chegar a residência onde tinha reservado um quarto. Sombria, a fazer lembrar as traseiras do Hospital de Santa Maria.
Era sábado e hora de refeição. O recepcionista encaminhou-me por um carreiro estreito que ia dar ao apartamento do caseiro. Toquei. E o bom senhor veio à porta. Seguiram-se as apresentações: «olá eu sou a Clara»; «Boa tarde eu sou o Álvaro». Era o Sr. Álvaro que guardava as chaves do meu novo quarto, o quarto onde iria viver nos próximos nove meses. Falava português. Um alivio, confesso. Aliás, era português. Tinha emigrado há uns anos bons para Paris, como tantos outros seus conterraneos. Na altura em que o absurdo da Guerra Colonial e o autoritarismo imposto pela ditatura de Salazar castravam toda e qualquer ideia de liberdade e de melhores condições de vida. Não me perguntem como era esse tempo. Nunca o conheci e não serei melhor a explicar esses anos que um bom livro de história ou que uma boa memória de tio, de uma tia, de um pai, de uma mãe, de um avô, de uma avó... O Sr. Álvaro perguntou-me de onde vinha e ao que vinha e a conversa foi fluindo. Quando lhe disse que era benfiquista a simpatia da primeira abordagem, consolidou-se: «este ano é que vamos ser campeões!», disse. Sorri, «onde é que eu já ouvi isto?». Subimos devagar num elevador velho que quando fechava a porta fazia um ruído que não lembrava de longe a música do Kenny. G.
Abriu-me a porta do T3B que ficava no meio de uma corredor no terceiro piso da casa. Então era alí, naquela coisa minuscula que iria viver. Era ali o meu quarto. Carreiros de formigas.. humm, bom sinal-pensei. As paredes eram de um amarelo deslavado, o chão riscado por marcas de chizato, os armários velhos cujas portas mal fechavam, sem casa de banho. Por instantes, a única coisa que me vinha a cabeça era «onde é que me meti, o que é que estou aqui a fazer». Mal sabia eu que aquele quarto e aquela casa ficariam para sempre na minha boa memória de estudante em Paris.
Os primeiros dias passaram sem me dar conta. O tempo de descobrir onde era a minha nova universidade; o tempo de me inteirar do sistema de transportes da cidade; o tempo de ver a Torre a Eiffell, do alto do Trocadero; o tempo de provar os fantásticos e calóricos «croissants aux amandes» ; o tempo de descobrir que estava no meio de uma cidade universitária que ficava no meio de Paris; o tempo de conhecer metade dos meus vizinhos, dei-me logo bem com a Adelina, uma professora primária que tinha escolhido Paris para estagiar; o tempo de provar as especialidades da cantina do sitio - que durante todos os meses que se seguiram nem na quantidade de insonso se alterarou; o tempo de telefonar ao namorado e dizer-lhe: «acabou, não sinto saudades tuas, não te quero enganar; não percas tempo comigo». Não, não fui má, nem fria nem precipitada, apenas sincera. Recitei um poema do Eugénio de Andrade, «Adeus» e ele chorou. Custou-me, mas não podia estar a dar ilusões a quem não as merecia ter. A sinceridade às vezes custa, a verdade também.
A renda pagava-se no inicio de cada mês, de inicio ao recepcionista. Um senhor meio ambiguo, guineense de origem, viajado, poliglota mas com um ar muito distraído. Era a ele a quem eu cravava cigarros quando estes me faltavam na algibeira. O que acontecia frequentemente tendo em conta o preço deles nos Tabac parisieneses. Seria portanto a boa altura de deixar de fumar - o que não se verificou, ao contrario. O Sr. Nadso era a verdadeira personagem. Uma personagem simpática e genuína, mas personagem!
Estava com a Adelina quando conheci o David, precisamente no momento das contas. Tinha acabado de chegar de Lisboa, estava com as malas aos pés e dentro delas a vontade de fazer do seu doutoramento em Paris uma experiência em grande. Que trazem as pessoas nas bagagens quando «trocam» um país por outro? Estavamos ali os três, os três com pretextos diferentes (um erasmus, um estágio, um doutoramento), mas o obejctivo era comum: descobrir Paris, descobrir os outros, descobrirmo-nos a nós.
Começei a falar bastante com o David. Entendiamo-nos bem. Descobrimos mesmo que eramos vizinhos nos arredores de Lisboa. Lembro-me, numa noite de Outono, de falarmos horas seguidas em frente ao relvado da Casa Internacional (onde havia a cantina, a biblioteca, as salas de desporto, o teatro). Contei-lhe coisas sobre mim e ele confessou-me as suas. Acho que nos dávamos mesmo bem! Cantarolavamos e eu às vezes recitava uns poemas. A Adelina achava que o David tinha um fraco por mim. Eu dizia que não, que era impressão dela. Que ideia descabida, pensava. Eramos só amigos, ou melhor, eramos só dois potênciais amigos. Nada de confusões, nada de segundas intenções. Até que a primeira festa (organizada pelo Comité de Residentes da Casa de Portugal) chegou... e com ela a declaração. Era halloween e eu não estava nada à espera...

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Do céu aos trambolhões

Cheguei! Sinto-me entre a imponência d'O Voo das Valkírias de Wagner e os gélidos nocturnos de Chopin.
Que faço eu aqui?
Longe da minha cidade, longe do meu país, num país que não conheço, com gente que nunca vi, numa língua que não falo!
Que faço eu aqui?
Estou num sítio novo... poderei mesmo dizer que tenho uma vida nova. Posso agir, fazer, posso ser quem eu quiser ser. Sem condicionantes, sem predicados... sem moral? Não, também nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Sem condicionantes nem predicados, mas ainda eu, ainda sou eu que aqui estou por debaixo desta pele bronzeada.
Que faço eu aqui?
Não sei! Bem, quero dizer, até sei, venho cá fazer uma tese de doutoramento. Mas ao que venho mesmo? Venho numa fuga para a frente, venho simplesmente.
Do aeroporto de orly aqui foi um pulo e será sempre um pulo, mas foi ainda mais rápidinho graças à intervenção de uma colega do trabalho... diremos - futuro trabalho seria mais correcto, mas enfim - que me foi buscar de carro.
Cheguei! Sinto uma doce brisa na fronte, mas não consigo respirar.
Não conheço ninguém e vou ter de começar tudo do zero, um zero vazio que engloba o todo.
Entro na residência onde encontrei lugar, uma residência André de Gouveia, penso que é um nome um pouco complicado para se dizer simplesmente casa de Portugal, ou maison du portugal como aparentemente se referem a ela por estes sítios.
Que sítio escuro e triste, com sofás do século passado, paredes a imitar mármore, um banco corrido e um recepcionista que fuma lânguidamente o seu marlboro enquanto defuma a peça que ternamente transvaza com a ajuda dos respiradores nos vidros. Parece uma mistura de macumba com bar de alterne. Ele pede-me os documentos e entre os meus solavancos em francês e o bom humor dele, fico com a ideia que fala português mas quis usufruir da minha incompetência em francês para gozar com a minha cara...
Logo ao meu lado, em frente à recepção estão duas raparigas. Tenho de afirmar que não as tinha visto e não, não perco masculinidade por não as ter visto! Aliás como tinha dito, a entrada era escura.
Uma chama-se Clara, a outra Adelina, e também são recém chegadas. Parecem-me simpáticas. Veremos com o passar do tempo! Até porque eu terei muito tempo... Hoje é o primeiro dia dos três anos que se seguem.