segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Halloweenizando o nosso mundo.

A festa de Halloween começava às dez da noite. Confesso que estava curiosa. Mais, estava ansiosa. O aparato era grande. Não se falava noutra coisa pelos corredores daquela casa que reclamavam por uma boa pintura há décadas. A Joana e a Maria João do meu andar, que já viviam ali para lá de dois anos (e portanto conheciam bem os cantos), faziam parte do Comité e de cada vez que me cruzavam repetiam «queremos te ver na festa, não podes faltar». Obvio que com tamanha publicidade e pompa tão entusiasta não poderia faltar. Naqueles dias, por muito coerência que se tenha tornava-se complicado contornar as malhas da publicidade. Neste caso, mais do que não querer contornar a publicidade eu própria me pus a publicitar a festa. Nunca tinha aderido à moda do Halloween, isto porque no meu país a moda nunca pegou, pelo menos quando era moda eu ter idade para festejar tais solenidades anglo-saxónicas. Dizia, que me ocupei da publicidade. Não pude deixar, portanto, de convidar o rapaz simpático que tinha conhecido dias antes, quando estava a jantar com o David e a Adelina na cantina. Não sei porquê mas longe de casa sentia-me muito menos tímida. Talvez porque não tivesse ninguém a julgar-me, talvez porque me sentisse longe de todos os meus complexos e mais perto de toda a minha liberdade. Na verdade, não convidei só um, convidei três ao mesmo tempo. Uma questão de diplomacia…diria. Eram amigos. Conhecemo-nos na cantina e a conversa foi fluindo porque (lá está) eu falava inglês e ele (contrariando a generalidade dos franceses) também. Confundiu-me com uma checa, depois com uma polaca, depois com uma russa. Por instantes, fui alemã, sueca, eslovena. Quando lhe disse que era portuguesa, começou a dizer-me o que todos os seus conterrâneos me repetiram ao longo dos anos : «ahh a minha mulher-a-dias também é portuguesa». Ao comentário, (que ao fim de algumas repetições começa a ser de difícil digestão, não porque tenha alguma coisa contra as mulheres a dias – muito pelo contrário – mas porque as profissões portugueses não se cingem só aos trabalhos domésticos), seguiram-se as palavras mais cotadas, isto é as palavras que os franceses sabem dizer em português: no topo do topo está sem margem para dúvidas o belíssimo «carralhu», o pessoalíssimo «filho-dá-putá» e o delicioso «bacalhá-ú». Um mimo, o léxico luso por estas bandas. Ele disse que apareceria. E apareceu mesmo. Mas bastante tarde. O tempo da festa começar e de alguns propósitos se desenharem. A sala era pequena, sufocante, metros debaixo da terra. Era excessivamente quente. No entanto, não houve condicionantes alguns para que não se demorasse a encher de gente, de fumo, de música, de muitas cores, de tantas línguas diferentes, de bebidas, do suor dos corpos transpirados, de miúdas a dançarem em cima dos balcões. Algo entre o psicadélico e o sincretismo brasileiro, algo difícil de descrever. Lembro-me que de meia em meia hora pedia a Adelina para subirmos até ao rés-do-chão, para poder respirar. A Adelina acedia aos meus pedidos e aproveitava sempre para telefonar ao namorado, o Pedro Abade que tinha ficado em Coimbra cheio de saudades dela – dizia. Ligavam-se todos os dias. Reconheço que chegava a perguntar-me o que tanto tinham para conversar, todos os dias, todas as horas. Mas a verdade é que tinham. Acho que quando estamos apaixonados mesmo que não tenhamos nada para acrescentar de novo, temos sempre muito para conversar. Que mais não seja para dizer que o cházinho de limão mexido com a colher do serviço da loja dos trezentos da esquerda para a direita pelos dedos do amado nos faz uma falta imensa ; que só de pensar nisso ficamos com vontade de adoecer para merecermos de novo um chazinho de limão mexido com a colher da loja dos trezentos da esquerda para a direita pelos dedos do amado. Bastará descer as escadas da casa para que o desejo do chá de limão passe. Da terceira vez que desci as escadas vi o David em plena forma. Dançava que nem um louco no meio da sala, transbordava em suor e alegria. Ria muito. Não havia dúvidas : estava a divertir-se e a divertir quem o via dançar. Sim, ver o David dançar é um regalo para os olhos. Dançava a 300 à hora e só não parecia o Michael Jackson porque tem uma pele mais bronzeada e um corte de cabelo que não o deixa perder a sua «masculinidade», como ele gosta de dizer. Eu e a Adelina aproximamo-nos do dançarino e meias desengonçadas lá tentamos acompanhar o rictmo. O que evidentemente não era fácil. Dançar nunca foi o meu forte e nunca o seria. Felizmente, não tive de dançar muito porque o David sugeriu que nos afastássemos. Queria «conversar»… Dei por mim com um rapaz que me conhecia à dias a dizer que sentia algo mais que uma simples amizade, que nunca pensou que em Paris se ia apaixonar por uma portuguesa, mas era o que lhe estava a acontecer, que me achava uma miúda incrível, que queria algo mais. Grandes sentimentos para tão pouco tempo de convivência. A resposta não tardou. Não o queria magoar. Tinha esse grande mal, por vezes inocente, de não querer magoar as pessoas. É difícil de aceitar que a nossa felicidade depende muita das vezes da infelicidade dos outros… Tentando ser sincera e reconfortante, afável e directa, disse-lhe que o que eu sentia por ele se baseava noutros pilares e que iria seguir certamente por outro caminho, outro que não esse da «mais do que uma simples amizade». Pedi-lhe mesmo desculpas se o tinha iludido de alguma maneira. Se o tinha feito crer que existiria algo mais, e se o tinha feito, fi-lo inconscientemente. Eis o eterno debate entre masculino/feminino… Por muitas línguas que se falem, por muitos gestos que se façam, há-de sempre escapar uma interpretação ou outra de prismas diferentes. Ele aceitou, mas aceitou mal. Orgulho masculino de quem ficou com o coração, melhor, com as ilusões a doer. Durante os meses que se seguiram afastou-se de mim, mas muito sorrateiramente, para que não ficasse eu a pensar que lhe tinha destroçado qualquer coisa. As previsões da Adelina estavam afinal correctas. Aliás, a Adelina raramente se enganava nestas coisas de coração. Só se enganava com o dela. Entretanto, o Mahomed chegou à festa. Sim era ele. Estava lindo. Vestia de mosqueteiro, tinha uma pose altiva e um olhar manipulador de Napoleão : cativante, penetrante e outros tantos adjectivos com «ante». A Adelina não simpatizou com a personagem. Sinceramente não percebia porquê. Dizia-me que ele lhe parecia seguro demais, sério demais, vazio de sentimentos demais. Eu achava que o conhecíamos há pouco tempo e que por isso mesmo qualquer que fosse o julgamento seria precipitado. A mim ele agradava-me. E desde o primeiro olhar que senti que qualquer coisa. E essa qualquer coisa acentuou-se. Veio ter comigo ao meio da sala e perguntou-me se queria ir com ele aos Champs Elysées a uma festa muito private, com uns amigos muito in. Eu recusei, não porque me queria fazer de difícil, mas porque achei prudente não me afastar muito de casa com alguém que mal conhecia. Ele ficou. O tempo de bebermos um copo e rir-mos juntos da pronuncia inglesa dos franceses. Deixou-me o telefone e a dançar com os amigos. As 3 da manha a festa acabou e eu passei o resto da noite a pensar nele. Esta seria a primeira festa do resto das nossas festas, naquela residência. Hoje com alguma distância começo a perceber que as festas daquela casa eram realmente qualquer coisa de genuíno. Num clima de extrema vitalidade íamos «carnavalizando», ou «halloweenizando» o nosso Mundo à nossa maneira durante horas seguidas… até chegar o seu “enterro" e com ele a ressaca e as coisas sérias… numa natureza, que entretanto, se tinha renovado. No outro dia de manhã o David dirigiu-me a palavra, já sem o sorriso da palavra, mas com o áspero da palavra e perguntou-me se queria ir aprender a dançar capoeira. Eu quis.

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