quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Os primeiros dias.

Nunca consegui embarcar naquele turismo de procissão, onde saltitamos de museu em museu, de doca em doca, de igreja em igreja e tudo com o despertador posto para às 6h30. Também nunca fiz um interail - e quase toda a universidade já o fez. Aliás, correr a Europa em comboio tornou-se o culto dos anos 90, prolongado nos 2000. Uma espécie de equivalente às viagens à boleia que se faziam nos anos setenta, quando, dizem, «ainda era seguro andar-se à boleia». Aquelas viagens indescritiveis que os pais contam com a nostalgia no olhar e as saudades na pele de quem fumava ganzas ao som dos reggies e dos rocks da altura, mas que se vêm, hoje, obrigados a tornear tais evidências que as fotografias contrariam. Para a nossa boa educação - acho.
Também nunca fiz um cruzeiro pelo mediterraneo ; uma volta ao mundo em oitenta dias (mesmo que Verne me tenha tentado); não conheço o adriático nem tão pouco naveguei pelo Tejo, a não ser naquelas travessias de uma margem à outra de Lisboa que se fazem em vinte minutos e onde, em vez de se ouvir o rio a mesclar-se com o mar, se ouve os choros das criancinhas e se vê os rostos cansados de quem volta a casa num final de tarde de um dia rico de trabalho.
Tão pouco tinha vivido sozinha, a não ser naquele Verão já distante em que passei quase dois meses em terras de sua majestade, numa estância de caça do então Rei Ricardo (dito coração de leão), agora transformado em Colégio Interno para meninas de bem. Não que fosse uma menina de bem (também não era uma menina de mal). Na verdade, era isso mesmo apenas uma menina (eis o termo apropriado) que queria ir de férias para longe das asas protectoras da mama. Como pretexto: « aprender o inglês», língua sem a qual não se sobrevive nos dias que por aí correm. O que para os mais puritanos pode ser um escandalo, mas de inconturnável utilidade. Por exemplo, quando se vai à Eslováquia dá-se graças a Deus - ou a qualquer outra transcendentice, pelo facto de que esta língua tão pobre quanto simples, exista. O mesmo acontece quande se vai ao Algarve, em pleno mês de Agosto. Thanks God: i can speak english! I can talk with a barman! I can take my coffee!
Nunca tinha ido a Paris. Também nunca tinha feito o Erasmus, que explicado suscintamente é um intercâmbio de estudantes entre universidades europeias; uma boa medida para suscitar a mobilidade de jovens numa europa que se quer cada vez «mais unida na diversidade». Não, isto não poderia deixar passar ao lado. Tinha de embarcar, fazer, viver a experiência. Assim, aos 21 anos e muitos meses, aos 58 kilos e ao quarto ano de «Estudos Portugueses» despedi-me de um namorado que não o seria por muito mais tempo, de uma cidade que passaria a ser de «férias» e muito mais amada do que antes, dos amigos de sempre, das colegas camaradas de faculdade e de uma familia que apesar de longe nunca me deixou de apoiar. Ia à procura do mim. De quem era, do que queria, do que raio andava aqui a fazer. Hoje, costumo dizer, que em Lisboa cresci e em Paris renasci.
Quando sai do avião, que me deixou no terminal Sul do aeroporto de Orly, naquele final de uma manha de Setembro, a primeira exclamação não foi a mais evidente: «sinto-me em casa, mas com mais frio». E na verdade sentia-me mesmo em casa. No ar não havia o cheiro das castanhas assadas de inicio de Outono, ou das sardinhas assadas de final de Verão, mas havia qualquer coisa, que me fazia sentir em casa. Havia mais carros, mais motas, mais bicicletas, mais pessoas. Mas havia qualquer coisa que me fazia sentir em casa, qualquer coisa que me dizia que Paris estava a minha espera. Sozinha e sem falar o francês ( ninguém diria que tinha sido uma boa aluna no liceu a francês), consegui apanhar o taxi e chegar a residência onde tinha reservado um quarto. Sombria, a fazer lembrar as traseiras do Hospital de Santa Maria.
Era sábado e hora de refeição. O recepcionista encaminhou-me por um carreiro estreito que ia dar ao apartamento do caseiro. Toquei. E o bom senhor veio à porta. Seguiram-se as apresentações: «olá eu sou a Clara»; «Boa tarde eu sou o Álvaro». Era o Sr. Álvaro que guardava as chaves do meu novo quarto, o quarto onde iria viver nos próximos nove meses. Falava português. Um alivio, confesso. Aliás, era português. Tinha emigrado há uns anos bons para Paris, como tantos outros seus conterraneos. Na altura em que o absurdo da Guerra Colonial e o autoritarismo imposto pela ditatura de Salazar castravam toda e qualquer ideia de liberdade e de melhores condições de vida. Não me perguntem como era esse tempo. Nunca o conheci e não serei melhor a explicar esses anos que um bom livro de história ou que uma boa memória de tio, de uma tia, de um pai, de uma mãe, de um avô, de uma avó... O Sr. Álvaro perguntou-me de onde vinha e ao que vinha e a conversa foi fluindo. Quando lhe disse que era benfiquista a simpatia da primeira abordagem, consolidou-se: «este ano é que vamos ser campeões!», disse. Sorri, «onde é que eu já ouvi isto?». Subimos devagar num elevador velho que quando fechava a porta fazia um ruído que não lembrava de longe a música do Kenny. G.
Abriu-me a porta do T3B que ficava no meio de uma corredor no terceiro piso da casa. Então era alí, naquela coisa minuscula que iria viver. Era ali o meu quarto. Carreiros de formigas.. humm, bom sinal-pensei. As paredes eram de um amarelo deslavado, o chão riscado por marcas de chizato, os armários velhos cujas portas mal fechavam, sem casa de banho. Por instantes, a única coisa que me vinha a cabeça era «onde é que me meti, o que é que estou aqui a fazer». Mal sabia eu que aquele quarto e aquela casa ficariam para sempre na minha boa memória de estudante em Paris.
Os primeiros dias passaram sem me dar conta. O tempo de descobrir onde era a minha nova universidade; o tempo de me inteirar do sistema de transportes da cidade; o tempo de ver a Torre a Eiffell, do alto do Trocadero; o tempo de provar os fantásticos e calóricos «croissants aux amandes» ; o tempo de descobrir que estava no meio de uma cidade universitária que ficava no meio de Paris; o tempo de conhecer metade dos meus vizinhos, dei-me logo bem com a Adelina, uma professora primária que tinha escolhido Paris para estagiar; o tempo de provar as especialidades da cantina do sitio - que durante todos os meses que se seguiram nem na quantidade de insonso se alterarou; o tempo de telefonar ao namorado e dizer-lhe: «acabou, não sinto saudades tuas, não te quero enganar; não percas tempo comigo». Não, não fui má, nem fria nem precipitada, apenas sincera. Recitei um poema do Eugénio de Andrade, «Adeus» e ele chorou. Custou-me, mas não podia estar a dar ilusões a quem não as merecia ter. A sinceridade às vezes custa, a verdade também.
A renda pagava-se no inicio de cada mês, de inicio ao recepcionista. Um senhor meio ambiguo, guineense de origem, viajado, poliglota mas com um ar muito distraído. Era a ele a quem eu cravava cigarros quando estes me faltavam na algibeira. O que acontecia frequentemente tendo em conta o preço deles nos Tabac parisieneses. Seria portanto a boa altura de deixar de fumar - o que não se verificou, ao contrario. O Sr. Nadso era a verdadeira personagem. Uma personagem simpática e genuína, mas personagem!
Estava com a Adelina quando conheci o David, precisamente no momento das contas. Tinha acabado de chegar de Lisboa, estava com as malas aos pés e dentro delas a vontade de fazer do seu doutoramento em Paris uma experiência em grande. Que trazem as pessoas nas bagagens quando «trocam» um país por outro? Estavamos ali os três, os três com pretextos diferentes (um erasmus, um estágio, um doutoramento), mas o obejctivo era comum: descobrir Paris, descobrir os outros, descobrirmo-nos a nós.
Começei a falar bastante com o David. Entendiamo-nos bem. Descobrimos mesmo que eramos vizinhos nos arredores de Lisboa. Lembro-me, numa noite de Outono, de falarmos horas seguidas em frente ao relvado da Casa Internacional (onde havia a cantina, a biblioteca, as salas de desporto, o teatro). Contei-lhe coisas sobre mim e ele confessou-me as suas. Acho que nos dávamos mesmo bem! Cantarolavamos e eu às vezes recitava uns poemas. A Adelina achava que o David tinha um fraco por mim. Eu dizia que não, que era impressão dela. Que ideia descabida, pensava. Eramos só amigos, ou melhor, eramos só dois potênciais amigos. Nada de confusões, nada de segundas intenções. Até que a primeira festa (organizada pelo Comité de Residentes da Casa de Portugal) chegou... e com ela a declaração. Era halloween e eu não estava nada à espera...

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