segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A primeira (des)ilusão ou a pedagogia do erro.

Talvez seja verdade que tudo tem a sua razão de acontecer, que nada seja por acaso, que tudo o que fomos, somos ou desejamos é nosso e nos pertence e não podemos apagar. E se é nosso, se aconteceu e se foi assim foi porque nós quisemos que fosse ou não assim, porque nós estivemos ou não estivemos, porque nós agimos assim ou ficamos pacificos assados. Diz um amigo que «há pessoas que escolhemos para esquecer e outras que escolhemos para lembrar». Fazendo as contas todas existe realmente uma, que se a memória fosse linear e radiocomandada, eu decideria, mais do que esquecer, apagar, eliminar, banir de vez do meu passado: o (dito) Mahomed, porque só me fez mal. Não foi preciso muito para me perceber que se tratava um falsário. Falsário de indentidade, falsário de sentimentos, falsário de palavras. Só me fez mal durante as três semanas que passamos juntos. As três piores que passei em Paris. Deu-me um nome que não era o seu, falou-me de um passado que não viveu, e fez-me crêr num sentimento que não sentiu, a acrescentar a isto devo dizer que era realmente uma personagem: filho adoptivo desde os vinte e muitos anos de um americano idoso que vivia num belo «chateau» nos arredores da cidade; filho biológico das ânsias de petroleo e das contas bancarias que o dito «pai» tinha na Suiça; filho ainda da vaidade e da pseudo-magnificiência de alguém que quer subir na vida pela via da facilidade. Um miserável de espirito diria, mas com uns olhos manipuladoramente perigosos. Se tivesse deixado as coisas se arrastarem, talvez me tivesse enfiado um véu rosto abaixo e trocado por uns litros de crude e alguns míseros camelos, e não será filme com certeza. A Adelina tinha razão. Durante uns tempos continuou a passar pela Rag para me deixar cartas, que confesso nunca li. Alias, nunca as abri. Porque sabia que ao abri-las, abriria também uma ferida que não estava de todo curada. Talvez não tivesse sido uma atitude tolerante, mas a verdade é que foi a única que arranjei para me esquecer dos dias horriveis e de humilhação por que me fez passar. Preveni a D. Eva da recepção que lhe não aceitasse mais as cartas que ia depositar em maõs na residência. Por sorte do acaso, nunca mais me cruzaria com ele. Ainda bem. Hoje sempre que alguem, por desventura de conversa, ou desvio nocivo de pensamento me falam nele, faço questão de não me querer lembrar. E vai resultando.

No entanto, nada me impediu de viver coisas fantásticas e de conhecer pessoas que escolhi para não esquecer. Como o Fernando Gaivota e a minha primeira visita ao Louvre acompanhada pela equipa dos crepes de porte d'orleans, dos chás de maçã e canela e das coisas sérias que entretanto se formava no seio de uma familia que aos poucos se construia. Entretanto o meu quarto estava cada vez mais confortável, com uma decoração que lhe ia dando caracter, pertença, possessão, dona. Sim, era o meu quarto agora e sentia-me bem nele. Já não eramos estranhos, e as formigas com o frio a apertar migraram para outras bandas. Nas paredes, os cartazes do «lire en fête» e da «nuit blanche», os maços coloridos que me lembraram em todas as línguas que «fumar mata», o recorte do Público a anunciar que «recordar é viver», os postais que ia guardando aqui e ali, as fotografias que me ancoravam em casa sem me aprisionar. E as folhas amareladas que a Adelina apanhava do chão a lembrarem-me como é bonito o Outono em Paris...


Sem comentários: